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Ludovico Silva, Alfred Hitchcock e a alienação do homem

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Por IELA em 04 de setembro de 2016

Ludovico Silva, Alfred Hitchcock e a alienação do homem

Recentemente, a propósito do próximo encontro do OLA (Observatório Latino-Americano), estou lendo “Teoria y Practica de la Ideología”, de Ludovico Silva. Uma grande obra acerca de um tema essencial, ainda mais na conjuntura brasileira atual.
Ludovico Silva, um venezuelano (muito antes da Venezuela chavista, é preciso dizer), foi quem talvez mais tenha avançado na América Latina no debate sobre a ideologia. Ideologia, bem entendida como falseamento da realidade. Ideologia como contraposição à consciência de classe, tão necessária aos trabalhadores.
O livro, grosso modo, se divide em duas partes. A primeira, composta de três capítulos, trata da “teoria da ideologia”, apresentando uma evolução do significado de ideologia através do tempo, além da concepção de Ludovico; apresenta ainda, uma crítica severa à ideologia do fim das ideologias. Já na segunda parte, encontram-se exemplos da “prática da ideologia”. Claro está que ali também encontramos teoria, afinal teoria e prática são inseparáveis. Mas o fato é que nesses dois capítulos o autor nos apresenta uma reflexão sobre a ideologia em expressões práticas da vida: nos quadrinhos e nos meios de comunicação de massa, em especial a televisão. Tudo entendido desde a perspectiva do subdesenvolvimento e da dependência.
Lendo o capítulo sobre os quadrinhos, em que ele trata de clássicos como O Fantasma, Tio Patinhas e Pato Donald, Mandrake e Tarzan, encontro no espaço dedicado à análise de Lorenzo Pachoques (Blondie, no original estadunidense), uma interessante análise sobre a alienação.
Para Marx, nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, o trabalhador no capitalismo se relaciona com o produto de seu trabalho como um objeto alienado. “Quanto mais o trabalhador se esforça, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alienado, que ele cria perante si próprio. […] O trabalhador põe a sua vida no objeto; porém, então, ela já não lhe pertence, mas ao objeto.”
O desconhecimento da totalidade do processo de trabalho, das relações por trás dela, o processo de trabalho mesmo, contínuo, degradante, desgastante, leva o trabalhador a um processo de alienação. Quanto mais produz, menos o produto a ele pertence e mais ele pertence ao produto.
No caso do quadrinho, Lorenzo é um trabalhador de escritório, especializado em fazer o nada, sem saber a utilidade de seu trabalho. Ludovico, incomodado com essa situação, se indaga:
“Por que este empregado faz o nada? Por que trabalha todo dia com papeis de uma empresa, sem saber para que é todo esse trabalho nem a quem irão parar os lucros dessa empresa. Ele só sabe que ganha determinada quantidade de dólares pela semana – por gerir mecanicamente uma série de papeis, sem saber ao certo o que é que está fazendo.” (Tradução nossa)
Isso me fez recordar um episódio da série de televisão Alfred Hitchcock Presents. Produzido nos anos 1950, o programa tinha a cada episódio, uma história diferente de mistério e suspense. Sempre me interessei por esse tipo de histórias, ainda mais quando antigas. É muito interessante perceber os medos de cada época espelhados na TV.
Nesse episódio em particular, o medo da época se expressa no receio do trabalhador em ser demitido, em lidar com a alta concorrência do mercado de trabalho depois de anos num mesmo emprego. Na história, um trabalhador de escritório é simplesmente despedido por estar velho demais (Ah, a justiça capitalista!). Triste e desamparado, com uma esposa doente que precisa de tratamento médico, o personagem se desespera. Eis que, quase que milagrosamente, recebe uma carta lhe contratando como empregado.
Curiosamente, quando chega ao escritório, percebe que é apenas uma sala simples, com uma única mesa onde trabalharia sozinho. Lá, conforme instruções escritas, ele deveria recortar diariamente algumas notícias de jornais, e enviá-las por correio a um endereço designado.
Não sabia o que fazia, para quem fazia e por que fazia seu trabalho. Mas, a necessidade de sobrevivência – essa necessidade que a ideologia capitalista tenta justificar como natural, mas que desde a análise da Acumulação Primitiva por Marx, sabemos que de natural nada tem – faz o homem não se importar com o “não saber”, e continuar realizando sempre o mesmo trabalho. Para o capitalista, um trabalhador exemplar!
As coisas mudam quando inesperadamente o chefe aparece, e pressiona-o a assassinar um inimigo seu. O trabalhador desespera-se, entra em conflito, não quer fazer este tipo de trabalho, não foi para isso que foi contratado, mas o patrão ameaça, “Você está implicado em tudo isso, não há escapatória. Há evidências contra você”.
Dramatismo a parte, veja o dilema do trabalhador. Ao descobrir, finalmente, a verdadeira face do seu trabalho, rebela-se, não pode aceitá-lo. É, alegoricamente, a superação da alienação. O homem percebe seu trabalho na totalidade, entende o porquê, o para quem, e o a que serve seu trabalho diário. Agora precisa, deve, superá-lo.
A busca pelo fim da alienação e a formação de uma consciência de classe é essencial para o trabalhador. A sua não superação confere a todos os trabalhadores a mediocridade que Ludovico descreve como a vida de Lorenzo Parachoques:
“E segue Lorenzo em sua mesa de trabalho, praticando o infernal trabalho de fazer o nada, empregado em uma empresa fabricante de quem sabe que mercadorias que logo irá ele mesmo, Lorenzo, comprar em uma loja ao triplo do preço que custou fabricá-las.” (Tradução nossa).
Não é mais sua vida quem determina o trabalho, mas o trabalho quem determina sua vida. A ideologia dominante nos quadrinhos, imperialista, estadunidense, faz parecer natural uma vida alienada como a de Lorenzo. A consciência crítica, contudo, nos arma para a superação dessa realidade.

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