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Neofascismo e decadência: o planeta burguês à deriva

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Por IELA em 21 de maio de 2018

Neofascismo e decadência: o planeta burguês à deriva

Conceitos nebulosos. Decadência e neofascismo são dois conceitos de difícil definição ainda que essenciais para entender a realidade atual, suas presenças esmagadoras, suas fronteiras imprecisas os tornam às vezes “invisíveis aos olhos” (como o ensinou Saint-Exupéry).
Onde termina o autoritarismo burguês e começa o neofascismo? Como diferenciar um processo de decadência de uma grande turbulência muito presente ou de um fenómeno de corrupção social muito extenso?
Quando falamos de decadência, no geral nos referimos a processos prolongados onde convergem um conjunto de indicadores como a redução sistemática do ritmo de crescimento económico até chegar ao estancamento ou a retração, o declínio demográfico, a degradação institucional, a hegemonia do parasitismo, a desintegração social generalizada e outros. No entanto, às vezes é inevitável assinalar a decadência de uma civilização ou de um conjunto de nações sem que se façam presentes todos esses sinais, o que decide a questão é a evidência de um processo duradouro de decomposição sistêmica, de desordem crescente, de entropia que se manifesta no comportamento das classes dirigentes corroídas pelo parasitismo, mas também das classes subordinadas.
É comum confundir decadência com crise prolongada, assim é como a chamada “longa crise do século XVII europeu” aparenta com sua desordem, suas confrontações, levar essa região ao desastre. No entanto, dito processo permitiu eliminar restos pré-capitalistas, digerir as riquezas acumuladas do saqueio periférico iniciado nos séculos XV e XVI, principalmente da América, e avançar no século XVIII para seu aburguesamento geral cujas três expressões mais notáveis foram a Revolução Industrial na Inglaterra, as transformações no continente desatadas pela Revolução Francesa, seguida pelas guerras napoleônicas, e o controle do planeta por parte do Ocidente completado em fins do século XIX.
Em um sentido contrário, o que se apresenta como superação da decadência (o adeus à crise dos anos 1930) entre o fim da Segunda Guerra Mundial e começos dos anos 1970, onde emergiu a superpotência estadunidense e se produziram os “milagres econômicos” da Alemanha Ocidental, Itália, etc., na realidade não foi mais que uma reabilitação de um pouco mais de duas décadas sustentada pelas muletas do keynesianismo militar dos Estados Unidos e da intervenção estatal em geral, dinamizando a oferta e a demanda dos países capitalistas centrais. Foi se esgotando para o fim dos anos 1960 até fazer crise na década seguinte, passe livre ao parasitismo financeiro e seus acompanhantes culturais, institucionais e econômicos. A droga keynesiana acalmou as dores, forneceu um dinamismo passageiro, porém inoculou venenos que terminaram por agravar mais adiante a situação do enfermo.
De sua parte, o neofascismo aparece emparentado com o fascismo clássico geralmente e, em certos casos, reproduz nostalgias do passado. No entanto, se diferencia do mesmo. Às vezes ressuscita velhos demônios que se misturam em uma marcha confusa (se a observamos desde antes de 1945) com descendentes de suas vítimas sob a bandeira comum do racismo anti-árabe, das islamofobia ou da russofobia. Afinal, o velho fascismo também nasceu cultivando incoerências, mesclando bandeiras contrapostas, como o elitismo nacionalista-imperialista e socialismo. Hitler e seu “nacional-socialismo” racista e ultra-autoritário constitui o caso mais grotesco.
Em ambos casos, se trata de expressões que colhem pragmaticamente sentimentos de ódio e desprezo para com os povos ou setores sociais considerados inferiores, corruptos, bárbaros e, em consequência, potenciais objetos de agressão (esmagamento dos mais fracos), adornando-as com títulos de nobreza (raça superior, patriotismo, civilização, valores morais, democracia, honestidade, etc.).
Quando observamos o velho fascismo, vemos como Hitler ou Mussolini em suas ascensões ao poder faziam demagogia “social” ou “socialista”, captando o espírito da época e a introduziam junto a outros condimentos em suas sopas ditatoriais, ainda que Franco afirmasse o conservadorismo mais negro sem necessidade dessas demagogias. E na América Latina apareciam ditaduras militares, apêndices de subdesenvolvimento do Ocidente, cultivando ambiguidades curiosas, como na Argentina no golpe de estado de 1930, onde se combinava o patriotismo aristocrático, a admiração ao fascismo italiano e a submissão colonial ao Império Inglês.
O neofascismo não fica atrás e hoje na Europa constatamos que em países como Polônia ou Letônia se mesclam o ultranacionalismo, o antissemitismo e outras manifestações nazista, o respeito formal à institucionalidade democrática made in União Europeia, o neoliberalismo econômico, a fobia antirrussa e a submissão à OTAN. No Brasil, Paraguai, Honduras ou Argentina é preservada a formalidade democrática, bandeira cultural de seu amo imperial, junto à concentração mafiosa do poder. Tanto no fascismo como no neofascismo os discursos oficiais não têm sido outra coisa que que vestimentas de ocasião do lobo autoritário.
O começo da decadência
A crise na qual estamos submersos deveria ser considerada como o capítulo atual de um longo processo de decadência pensado como fenômeno de caráter planetário. Quando começou? Ao fazer o percurso temporal para trás, encontramos anos decisivos como 2008, quando estoura a bolha financeira e se inicia a série de crescimentos econômicos anêmicos no Ocidente e vai se desacelerando a expansão chinesa. O que inevitavelmente nos leva a 2001 e seus arredores, quando convergem o fim do auge neoliberal dos 1990 (cheio de turbulências) com o lançamento imperial de uma desesperada (e fracassada) fuga militarista para adiante, apontando para a conquista do coração geopolítico da Eurásia e seus tesouros energéticos.
Esse olhar nos impulsiona a continuar retrocedendo e chegar aos anos 1970, quando emerge a crise petroleira e a estagflação, e se instala o declínio tendencial da taxa de crescimento econômico global que se prolonga até a atualidade, motorizada pelas potências econômicas tradicionais e suavizadas pela ascensão chinesa. Sem esquecer o antecedente de 1968 (com epicentro nos sucessos de Maio na França e suas extensões), terremoto político- cultural que quebra a ilusão da nova prosperidade civilizacional do Ocidente.
Dita ilusão se apoiava na efêmera recuperação keynesiana da Europa Ocidental e Estados Unidos, se a medirmos em tempos históricos, enfrentada com a constante redução de sua área de dominação territorial planetária (ampliação do campo socialista e do espaço pós-colonial).
Atravessamos essa festa geograficamente limitada, entramos na Segunda Guerra Mundial e navegamos pelas recessões dos anos 1930, desembocando em 1929 para, finalmente, nos determos em 1914, ano chave que marca o final da ascensão irresistível do Ocidente desde seus fracassos nas Cruzadas do Leste (para o Oriente Médio e para o espaço eslavo) e seus primeiros êxitos importantes no Oeste, desde o século XV: a conquista completa da Península Ibérica e de posições no Oeste da África e, sobretudo, do continente americano. Ofensiva plurissecular que culmina ao longo do século XIX, devorando a quase totalidade da periferia.
O dito megassaqueio gerou (e continua gerando) o que Malek qualificou como “Superávit Histórico”, ou seja, “o superávit acumulado pela Europa e Estados Unidos sob a forma de civilização ocidental baseada no saqueio da Ásia, África e América Latina. Imensa acumulação de poder que constitui a fonte da iniciativa histórica dos países do Oeste, desde o princípio dos descobrimentos marítimos, passando pela explosão da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, até nossos dias” . Acumulação de riquezas que permitiu criar um grande mercado interno, sua industrialização e o desenvolvimento de uma sucessão de revoluções científicas e tecnológicas. O mundo do ano 1900 era decididamente ocidental por integração burguesa de seu espaço original e por suas ampliações coloniais e semicoloniais.
Nesse momento, o “progresso”, ou seja, a marcha ascendente da civilização burguesa (identificada com os padrões culturais do Ocidente) em escala planetária, conseguiu impor a imagem de um processo irresistível de melhorias sucessivas da condição humana, ditadas pela expansão do sistema ou por sua possível “superação socialista” engendrada desde o interior do capitalismo central industrializado. Assim foi como a geração bolchevique cultivou a esperança de que a revolução que eles encabeçaram na periferia euroasiática russa constituía o detonante da revolução proletária no Ocidente. Os dirigentes da primeira grande insurreição exitosa da periferia acreditavam erroneamente ser a avanço da chegada do pós-capitalismo socialista ocidental (e em consequência mundial).
Como sabemos, a expansão do capitalismo liberal, que segundo as ideias dominantes no começo do século XX irradiava o planeta para convertê-lo cedo ou tarde em um universo próspero e livre (porém que, na realidade, desenvolvia o centro e subdesenvolvia a periferia), foi interrompida por um massacre espantoso, sem precedentes na história universal, chamado Primeira Guerra Mundial. E também sabemos que a tão esperada revolução socialista no Ocidente, impulsionada pela crise e pelo novo exemplo soviético, não chegou nunca e que o que chegou ali foi o fascismo.
Raízes ocidentais do fascismo clássico
As interpretações tradicionais do velho fascismo europeu visam navegar entre as que o atribuem a uma sorte de desvio moral das elites e, também, das massas populares enganadas por elas, principal produto da Primeira Guerra Mundial ou bem como resultado da radicalização de certas taras culturais gerada por formas específicas, perversas, de desenvolvimento da modernidade em países como Alemanha e Itália ou, também, como reação antiproletária da alta burguesia, arrastando as classes médias. Neste último caso, o fascismo teria sido uma emergência terrorista burguesa da luta de classes . Não faltaram, em certos casos, algumas referências à história anterior que quase sempre ficam esmagadas pelo peso confuso das desordens das primeiras décadas do século XX, que produziram essa novidade surpreendente. Um marxista eminente daqueles tempos, Karl Radek, afirmava em 1930, após das últimas eleições na Alemanha que marcavam a ascensão dos nazistas: “Devemos constatar que sobre este partido que ocupa o segundo lugar na política alemã, nem a literatura burguesa nem a socialista nada disseram. É um partido sem história que se instala de improviso na vida política da Alemanha, como uma ilha que emerge em meio ao mar sob o efeito de forças vulcânicas” .
“Partido sem história”, segundo Radek. De acordo com o medievalista Karl Werner, “Ninguém negou mais a história alemã que os ideólogos nazistas” . A Escola de Frankfurt afirmou essa hipótese e Max Horkheimer assinalava, em 1943, que “O fascismo em sua exaltação do passado se torna anti-histórico. As referências dos nazistas à história só significam que os poderosos têm que mandar e que não há com emancipar-se das leis eternas que guiam a história. Quando eles dizem História, na realidade dizem o contrário: Mitologia”.
Inclusive em pleno auge hitleriano, Hermann Rauschning, um dos mais agudos avaliadores do nazismo, não pode escapar a ideia do caráter absurdo, a-histórico e efêmero do nazismo apresentado como um surpreendente estouro de niilismo. Segundo Rauschning: “este fanatismo produzido e difundido é tão artificial e inautêntico que todo esse gigantesco aparato poderia chegar a ser derrubado de um dia para outro, a partir de algum acontecimento, sem deixar traço algum de vida autônoma de alguma parte de seu mecanismo” .
Partido sem história, negador da história, substituindo a descrição científica da história real pela mitologia, construção niilista efêmera, etc.
No entanto, a propósito do caso paradigmático por excelência do fascismo – o nazismo alemão e sua fúria exterminadora de judeus –, autores como Goldhagen, ao levantar uma questão se sentido comum, quem foram os executores do Holocausto?, conclui que: “por não ter existido uma considerável inclinação entre os alemães comuns a tolerar, apoiar e inclusive, em muitos casos, contribuir primeiro à perseguição absolutamente radical dos judeus na década de 1930 e, depois (pelo menos entre os encarregados de realizar a tarefa), de participar na matança de judeus, o regime jamais teria podido exterminar seis milhões de pessoas”, ao que acrescenta: “cabe assinalar que a existência de um antissemitismo muito difundido em outras zonas da Europa explica porque os alemães encontraram em outros países tantas pessoas dispostas a ajudar e desejosas de matar judeus” . A partir daí, torna inevitável, como faz o autor, buscar referências na tradição histórica do povo alemão e assinalar, por exemplo, a ferocidade antissemita de Martinho Lutero (1483-1546) como uma das fontes de sua popularidade. Ao que devemos agregar o plurissecular desprezo para com os eslavos, com especial ênfase em russos e polacos, considerados povos inferiores destinados a ser escravizados por povos superiores como os alemães, o que legitimava a vocação para marchar para o Leste, para sua conquista imperial, como antecipava Hitler muito antes de chegar ao poder. A “Drang nach Osten” (impulso ou expansão para o Leste) que no século XIX incentivavam intelectuais nacionalistas como Heinrich von Sybel, que postulava reviver as aventuras medievais de colonização alemã do Europa oriental, revalorizando os mitos das cruzadas germânicas e escandinavas para o Leste na Baixa Idade Média, paralelas às cruzadas para o Oriente Médio. Assim foi como a Ordem Teutônica tentou conquistar a terra russa e foi derrotada, como o relata o filme “Alexander Nevsky”, de Sergei Eisenstein, antecipando em 1938 a derrota catastrófica que os herdeiros nazistas da Ordem sofreriam na URSS poucos anos depois. Tudo isto nos leva a entender a aparente loucura de Hitler em conquistar o Leste não como uma cegueira insólita, mas como herança cultural profunda, latente na subjetividade popular alemã. Como assinala acertadamente Ayçoberry em seu livro já citado: “No desenvolvimento da política exterior (de Hitler) tudo estava subordinado à expansão para o Leste… o que impôs abandonos táticos inquietantes para os nacionalistas primários: renúncia ao Tirol para conseguir a aliança com a Itália, à expansão ultramarina para seduzir a Inglaterra e, inclusive, a conquistas na França já que, segundo Hitler, a guerra contra dita nação ‘só se justificaria se dessa maneira conseguirmos cobrir nossa retaguarda e, assim, ampliar nosso espaço vital no Leste’, cujo foco central era a captura e destruição da União Soviética” .
A mitologia, subestimada por Horkheimer, revelava a existência de uma memória histórica imperialista nada superficial.
Necessitamos ampliar o espaço da memória europeia e colocar a descoberto um passado monstruoso de conquistas coloniais exitosas ou fracassadas, das gigantescas matanças dos povos originários da América, de africanos árabes ou subsaarianos, de asiáticos da Índia e China, em suma, de vastos genocídios periféricos que moldaram a cultura de seus assassinos ocidentais. Malek menciona o “superávit histórico”, principalmente econômico, que acumulou o Ocidente com ditos saqueios, que não deveria ocultar o componente criminoso do mesmo, não como lembrança distante, mas como parte decisiva da reprodução de uma civilização sanguinária. Matança de periféricos combinada com grandes massacres e saqueios interno, como explicou Marx em sua descrição da Acumulação Primitiva.
Nesse sentido, Hitler, Mussolini ou Franco não foram os produtos de irrupções momentâneas sem passado nem futuro.
Os mitos históricos não deveriam ser atirados à lixeira das histórias falsas, sobretudo se aparecem na superfície ou ficam submersas na memória social para reaparecer no momento menos pensado. São formas concretas de memória, latentes, em consequência, componentes da cultura popular. Podem ser criticadas, acusadas de ser visões deformadas ou “irreais” do passado como também o poderiam ser certas construções de história “científica”, baseadas em uns pobres atos disponíveis ou não tão pobres, porém sempre incompletos, quase sempre distorcidos pelo observador influído pela cultura (as deformações ideológicas) de seu tempo.
Uma observação que merece ser o objeto de uma reflexão mais ampla é que a chegada do fascismo (sua primeira vitória na Itália) se produziu muito pouco tempo depois do Ocidente se converter em amo do mundo, visto do longo prazo histórico, ambos fenômenos convergem em um curto espaço temporal. A civilização burguesa torna-se realmente universal, planetária, começou a tocar seus limites territoriais e foi deixando de lado seus discursos democráticos (se quebra a lógica da expansão para espaços indefesos e ganham força as do canibalismo interimperialista, do disciplinamento terrorista interno e do expansionismo desesperado).
Mais ainda, é possível detectar na Europa embriões significativos de fascismo entre fins do século XIX e começos do XX, bem antes da megacrise iniciada em 1914, desde as emergências políticas protofascistas na França até manifestações ideológicas virulentas de repúdio ao legado da Revolução Francesa, a Comuna de Paris e a proliferação de expressões democráticas radicais, socialistas e comunistas. Nietzsche ou Sorel anunciaram o fascismo avant la lettre, como restabelecimento de hierarquias sociais vigorosas, de autoritarismos rejuvenescedores do Ocidente.
Na Europa de fins do século XIX, próspera e imperialista, onde no topo de seu sistema de poder reinava uma pequena elite financeira (a Haute Finance assinalada por Polanyi como garantidora do equilíbrio e da paz interior ), emergiam as origens do que será o fim do capitalismo liberal e o nascimento do fascismo.
Inclusive fora do cenário europeu nos 1920 e ainda antes de 1914, nos Estados Unidos (extensão neo-europeia), apareceram o que alguns autores assinalam como as origens norte-americanas da ideologia nazista. Domenico Losurdo assinala “o notável papel que os movimentos reacionários e racistas americanos desenvolveram ao inspirar e alimentar na Alemanha a agitação que ao final desembocou no triunfo de Hitler. Já os anos 20, entre a Ku Klux Klan e os círculos alemães de extrema direita, se estabeleceram relações de intercâmbio e colaboração com a consigna do racismo contra os negros e contra os judeus”. Losurdo acrescenta exemplos concretos inclusive alguns referentes às raízes linguísticas de conceitos fundamentais do discurso nazista: “O termo Untermensch, que desempenha um papel tão central como nefasto na teoria e na prática do Terceiro Reich, não é outro a tradução de Under Man [sub-homem]. O reconhece Alfred Rosenberg, um dos principais ideólogos do nazismo, que expressa sua admiração pelo autor estadunidense Lothrop Stoddard: a ele corresponde o mérito de ter cunhado pela primeira vez o termo em questão, que ressaltar como subtítulo (The Menace of the Under Man) [A ameaça do sub-homem] de um livro publicado em Nova York, em 1922, e de sua versão alemã (Die Drohung des Untermenschen) aparecia três anos depois. Quanto ao seu significado, Stoddard esclarece que este serve para mostrar ao conjunto de “selvagens e bárbaros”, “essencialmente negados à civilização, seus inimigos incorrigíveis”, com quem é necessário proceder a um radical ajuste de contas, caso se queira evitar o perigo que ameaça destruir a civilização. Elogiado, muito antes que por Rosenberg, por dois presidentes estadunidenses (Harding e Hoover), o autor americano é posteriormente recebido com todas as honras em Berlim, onde encontra os exponentes mais ilustres da eugenia nazista, além dos mais altos hierarcas do regime, inclusive Adolf Hitler, que estava empenhado em sua campanha de aniquilação e escravidão dos Untermenschen, ou seja dos “índios” da Europa Oriental” .
Não se trata apenas da influência da teoria estadunidense da “white supremacy”, reação protofascista de fins do século XIX contra a abolição da escravidão, expressa na Alemanha como supremacia ariana, mas também de textos decisivos como “O Judeu Internacional”, de Henry Ford, publicado em 1920, depois traduzido e muito difundido na Alemanha, onde importantes chefes nazistas como Von Schirack e Himmler assinalarão, anos depois, terem se inspirado nesse livro. Himmler fez notar que o livro de Ford cumpriu um papel significativo na formação de Hitler .
Ascensão, auge, declínio e recomposição da maré periférica
A irrupção do fascismo clássico, porém também sua derrota e renascimento como neofascismo, deve ser relacionado com a ascensão e posterior declínio de uma maré periférica que ameaçou sepultar a hegemonia ocidental, fato decisivo do século XX. Porém, que agora se apresenta principalmente sob a forma de potências emergentes, despertando a histeria geopolítica dos Estados Unidos e uma profunda crise existencial em alguns dos principais países europeus como Alemanha, França ou Itália, arrastados, de um lado, por seu amo norte-americano e seus velhos instintos ocidentalistas imperiais (que o fazem ver o Leste como um espaço de depredação) e, pelo outro, por seus interesses econômicos concretos que apontam para algum tipo de associação ou amizade com as grandes economias euroasiáticas começando pela China e Rússia.
Em 1914, a expansão ocidental se converteu em guerra intestina (interimperialista) e, em 1917, se produziu o primeiro mega desengajamento, o maior espaço geográfico do planeta onde habitava o Império Russo, rompeu com o Ocidente convertendo-se em União Soviética. Mais adiante chegaram a cisão chinesa (1949), as expulsões do conquistador ocidental na península da Indochina, a revolução cubana e um amplo leque de nacionalismos periféricos, que quebraram os velhos laços coloniais. Era possível mostrar uma sorte de filme onde o espaço de dominação global do Ocidente se retraía gradualmente.
A ilusão marxista-eurocêntrica de superação pós-capitalista a partir do centro imperial (desenvolvido) do mundo foi substituída por outra ilusão não menos pretenciosas, segundo a qual dita superação se expandia a partir da periferia subdesenvolvida, desde os capitalismos ou semicapitalismos submetidos. No entanto, quando nos anos 1970 e 1980 começou e foi se agravando a crise do capitalismo central, quando perdia dinamismo produtivo e em seu seio se propagava o parasitismo financeiro, a ameaça comunista e anti-imperialista também foi perdendo dinamismo. A radicalização maoísta da revolução chinesa começou a converter-se, desde fins dos anos 1970, em “socialismo de mercado” e daí um curioso capitalismo burocrático com o partido comunista encabeçando, fazendo da China no século XXI a segunda potência do mundo tendendo a se transformar em primeira. A URSS foi apodrecendo e colapsou no início dos anos 1990, arrastando todo seu espaço “socialista”, inclusive países que tinham mantido autonomia, como Albânia e Iugoslávia.
Sobretudo a partir do fim da URSS, porém com manifestações anteriores, até fins do século XX, em boa parte da Europa emergia uma onda reacionária que retomava componentes do velho fascismo incorporando elementos novos. Racismo contra os imigrantes, ódios interétnicos, recuperação mais ou menos sinuosa, mais ou menos desavergonhada de bandeiras enterradas em 1945. Tratou-se de um processo confuso que levava em consideração os novos tempos globais e que deu seus primeiros passos antes da derrubada soviética. Na França de 1981, por exemplo, a esquerda ganhava as eleições, porém se estavam na moda os chamados “novos filósofos” como Bernard Henri Levy ou André Glucksmann, que se apresentavam como supostos “humanistas anti-stalinistas”, rapidamente se converteram em um anticomunismo raivoso, convergindo em muitos aspectos com a direita neofascista. Aparentemente, a França girava politicamente para a esquerda (depois se comprovou que se tratava de uma pura aparência), enquanto se deslocava culturalmente para a direita. A socialdemocracia, da Espanha até a Alemanha, ia abandonando seus modelos keynesianos, produtivistas e integradores, e penetrava no universo neoliberal governado pela especulação financeira. As chamadas direitas “democrática” faziam algo parecido e, gradualmente, se estendia uma mancha pestilenta que começava a ser qualificada como neonazismo, neofascismo, extrema direita, nova direita, etc. Na Europa Oriental, em lugares como a Polônia, países bálticos, Croácia ou mais recentemente na Ucrânia, reapareceram os velhos fantasmas do fascismo. Já em pleno século XXI, na Alemanha, Áustria, França e outros países europeus, os neofascistas obtém grandes progressos eleitorais, em vários deles associando estilos e tradições do passado hitlerista com sólidas amizades sionistas. A nova islamofobia substitui (e às vezes se mescla com) a velha judeofobia e até se produziram casos tragicómicos, onde em um mesmo movimento, se apertavam alguns veteranos (e inclusive jovens) admiradores de Hitler e Mussolini… e de Benjamin Netanyahu. Também aflorava neste europeu, e não apenas na Ucrânia (Guerra Fria 2.0 mediante), o revanchismo antirrusso disposto a vingar-se da derrota sofrida sete décadas atrás.
Nos Estados Unidos, sobretudo desde 2001, emergiu uma onda ultraimperialista que foi se desenvolvendo através dos governos de Bush e Obama até desembocar em Trump, ao ritmo da degradação financeira. Multiplicação de intervenções militares diretas e indiretas, golpes brandos e sanções contra países rebeldes à dominação imperial, racismo, islamofobia, confronto com a Rússia se aproximando ao limite da guerra… a era Trump foi assumindo todas as características de um protofascismo.
Regressando à ascensão e derrota do velho fascismo, é necessário ressaltar não só a persistência imperialista alemã em torno da “marcha para o Leste”, motor do expansionismo hitleriano, mas os delírios mussolinianos acerca da restauração do império romano ou o espanholismo não menos delirante de José Antonio Primo de Rivera, nostálgico do império espanhol desaparecido. A tentativa de conquista da União Soviética tomou a forma de uma grande cruzada europeia contra o gigante euroasiático, onde participaram não apenas alemães, mas também franceses, espanhóis, italianos, belgas, ucranianos ocidentais, letões, etc. O aspecto imperialista-ocidental do fascismo clássico e em consequência dos fascismos periféricos como satélites coloniais, seguidores elitistas de seus amos históricos, fica ao descoberto.
Nesse sentido, para além dos debates acerca da natureza socialista da URSS, de sua legitimidade comunista e de seu lugar na história das ideias e práticas pós-capitalistas, é importante destacar que provavelmente, visto a nível da história universal, o maior mérito da experiência soviética foi o da destruição da barbárie fascista, inscrita no multissecular percurso de saqueios e genocídios ocidentais. Esse fato por si só é suficiente para justificar, reivindicar sua existência. Sem a URSS, Hitler teria conquistado esses territórios, a exitosa marcha para o Leste teria outorgado à Alemanha a liderança da Europa e certamente a primazia global como cabeça de um novo império.
A captura de Berlim pelo exército soviético poderia ser vista como o símbolo da vitória da humanidade condenada à escravidão, a periferia, o “Oriente” tantas vezes estigmatizado. Oriente desprezado (e temido) cujos prolongamentos se estendiam para as periferias interiores do centro do mundo (os judeus e os ciganos europeus e demais grupos locais considerados inferiores, perigosos, indesejáveis).
Os ciclos fascista e neofascista aparecem como etapas da longa decadência sistêmica global, tentativas brutais de salvação, de recuperação da vitalidade perdida. Derrotada a primeira arremetida reacionária (1945), as formas autoritárias extremas do capitalismo realizaram uma prudente retirada estratégica, porém coincidente com a evaporação da maré periférica nos anos 1980 e começos dos 1990, a peste começou a se recompor, renovando discursos e técnicas de intervenção. Tratou-se de uma transformação conforme os novos tempos, onde o fenômeno entrópico está experimentando um gigantesco salto para frente. No passado, o retrocesso do polo hegemônico ocidental (do espaço territorial sob seu controle, de sua dominação financeira, tecnológica, etc.) capturou, arrastou para o fracasso ensaios de autonomização capitalista ou com pretensões pós-capitalistas. O caso do Japão entre a restauração Meiji e Hiroshima mostrou os limites da criação de uma potência capitalista (imperialista) independente respeito da trama de dominação ocidental. O caso da URSS expressou a debilidade de uma construção pós-capitalista híbrida, geopoliticamente antagônica ao Ocidente, mesclando entre outras coisas estatismo, aspirações comunistas e modernização negadora de heranças culturais coletivistas repudiadas como pré-capitalistas. Tampouco devemos esquecer neste caso as consequências da cruzada nazista que custou 27 milhões de mortos e o posterior acosso político-militar sofrido durante a Guerra Fria, formas concretas de exercício do poder do Ocidente, prisioneiro de sua dinâmica expansionista, estrategicamente incompatível com algum tipo de coexistência medianamente durável (essa obsessão ocidental por controlar tudo que se expressou no passado como anticomunismo renasce atualmente como russofobia).
Agora, quando se aprofunda o declínio ocidental, emergem novos desafios periféricos, principalmente os da China e Rússia. Em ambos casos e depois de diferentes percursos, se constituíram sistemas que de maneira muito geral podem ser caracterizados como capitalismos burocráticos, com amplas margens de autonomia a respeito do Ocidente e arrastando o peso de suas perspectivas heranças culturais socialistas. Com um bem orquestrado giro para o capitalismo insertado na trama global, porém preservando o governo do Partido Comunista no caso chinês, demolindo primeiro o edifício soviético para depois de uma efêmera tentativa de instauração neoliberal, impor controles estatais sobre a economia no caso russo .
Em princípio, ficam abertos dois cenários entre outros, se partirmos do pressuposto de que a crise global vai se agravar. O primeiro, mostra a China e a Rússia arrastadas pelo desastre geral, suas estruturas exportadoras dependentes dos mercados da Europa e Estados Unidos, a trama financeira internacional da qual constituem e as exigências de militarização derivadas da agressividade dos países da OTAN, as atariam à degradação euro-norte-americana-global.
O segundo cenário apresenta estas potências sobrevivendo ao desastre, afirmando seu espaço euroasiático. Uma das variantes (atenção, não a única) desse futuro possível seria a introdução em suas sociedades de componentes defensivos pós-capitalistas, para o que dispõem de reservas culturais mais que suficientes.
Aprofundamento da decadência
A vocação planetária-imperialista do capitalismo (de seu motor ocidental) nos permite estabelecer paralelos com ciclos de civilizações anteriores que não alcançaram essa dimensão geográfica. Impérios condenados a expandir-se de acordo com as leis que regeram sua reprodução, ampliando seu espaço de dominação até chegar ao limite estabelecido pelas técnicas de sua época. Nesse momento, sua lógica de reprodução ampliada chocava com a barreira territorial, então o desenvolvimento vigoroso ia se transformando em decadência, as virtudes em corrupção, os equilíbrios em desordem, a exploração eficaz de povos e recursos naturais em superexploração devastadora da periferia que destruía a sustentabilidade do sistema, enquanto a multiplicação de controles administrativos-repressivos, entre outros fatores, contribuía com o crescimento do parasitismo.
A comparação com o caso de Roma é inevitável, é o melhor documentado. Pierre Chaunu nos explica que “a conquista se desenvolveu mediante a expansão em círculos concêntricos realizando a extração de homens e produtos da periferia para o centro. O característico de dito sistema é que excluía o estado estacionário, não podia subsistir sem agregar novas zonas de extração às existentes chegando, finalmente, depois de um enriquecimento incessante, à degradação do centro já que não podia viver dentro de limites estáveis, sem a existência em suas fronteiras de um espaço aberto explorável, de uma “fronteira aberta”, de uma zona de extração não integrada. O ponto de inflexão ocorreu sob o reino de Trajano, em começos do século II quando se alcançou o limite da expansão em Dacia, Escócia, Armênia… o norte da África de Mauritânia ao Egito… quando a conquista romana tinha chegado a um pouco mais de 6 milhões de quilômetros quadrados, tendo absorvido a totalidade do espaço disponível possível” . As técnicas de comunicação e transporte da época

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